sexta-feira, 8 de maio de 2015

Gerês Trail Adventure visto por um Belga...


Antes de começar a descrever esta incrível aventura, deixa-me só contar como cheguei até aqui.
A corrida sempre fez parte de mim, aliás foi das poucas coisas que me deixarem fazer quando era miúdo e ao longo dos anos tornou-se um vício. Sempre fui corredor de estrada e quando me falaram a primeira vez nos trails, pensei que esta coisa maluca não era para mim, que devia era proteger os joelhos, tornozelos e gémeos para poder continuar a correr até morrer...até que aceitei o desafio de me arriscar pelos montes e trilhos dos malucos e nunca mais quis outra coisa...
A ideia, ou antes o sonho de participar no GTA veio depois da primeira ou segunda experiência com o Carlos Sá. Já não sei se foi na Serra d'Arga ou no Gerês Marathon, só sei que iria chatear toda a gente que fosse preciso até conseguir inscrever-me  nesta festa do trail. Tentei convencer amigos para fazer equipa comigo, contactei a organização para arranjar parceiro, mas ninguém achava que alguém no seu perfeito juízo poderia querer correr tipo doido durante quatro dias a fio. Mesmo quando lançaram a possibilidade de correr à solo, candidatei-me, enviei o meu humilde curriculozinho, pensando que nunca seria aceite...Foi o meu dia mais feliz nesta curta vida de trailer quando recebi a notícia que me podia inscrever à solo...Afinal, ser chato sempre convence!

Etapa 0 - Trail Solidário do Vez - 45km

Esta etapa foi um bónus, ou melhor, como o chamaram, um bom treino para o que vinha à seguir...Não sou pessoa de dizer não aos convites e não ia deixar ficar em branco esta simpática oferta de poder participar (de graça!) à primeira etapa do PGTA, lado ao lado com aqueles que viriam a ser os meus heróis ao longo da próxima semana, . Mesmo a tempestade assustadora da noite anterior, que afastou mais de metade do meu grupo de amigos, nunca chegou a ser motivo de preocupação da minha parte. Se era para fazer os 130km, mal era se hesitasse já num mero treininho no monte...
Com um nervoso miudinho, fui chegando à parte da frente da largada, fui admirando o pessoal com os dorsais com poucos números (sim, aqueles heróis dos 280!) e sentia logo que havia aqui qualquer coisa de especial. Estes trails do Carlos Sá não são todos organizadinhos, prontinhos com tudo empacotadinho...aqui é preciso ter garra, querer ir para a aventura, para o desconhecido, porque mesmo assim está lá tudo pensado ao pormenor...só que não é apresentado de tabuleiro. Podem comparar-se os trails, ditos normais, como ir ao restaurante. A ementa está feita, está lá tudo escrito, até as vezes parece que a comida já vem meia mastigada. Comemos, bebemos, vai o cafezinho, pagamos e vamos para casa...Nos trails do Carlos Sá é diferente. É como jantar em casa. Não sabemos o que vai ser, mas sabemos que tudo que a mãe faz, é bom. Sentamo-nos, deixamo-nos surpreender pelos dotes culinários que nos são familiares e depois do jantar, ficamos, porque não queremos ir para lado nenhum...este é o nosso lar, a nossa família e sentimo-nos bem..
Mas fiquei de falar sobre a prova. A prova foi o início da festa que se prolongaria ao longo de vários dias. A alegria de chegar até aos dois primeiros abastecimentos com pessoal das distâncias mais curtas e de ser recebido pelos grupos folclóricos e gente da vila a presentear-nos com sorrisos rasgados e produtos da terra, tudo isto antes de começar o verdadeiro sobe e desce, nem me fez lembrar que já tinha mais de um terço do percurso nas sapatilhas. Algures numa descida mais rápida fomos apanhados em cascata por uma verdadeira armada de fotógrafos, já bem conhecidos como o Miro, o Matias  Novo e o Laureano. O percurso tinha tanto de técnico como de paisagens deslumbrantes e a acalmia dos últimos quilómetros ao lado do rio Vez contrastava com a dureza de alguns troços anteriores. Mesmo com a meta à palmos de distância, enganei-me e fui novamente para o outro lado da ponte e a subir o monte. Foi só mais um quilómetro, foi como matar saudades e querer prolongar esta alegria por mais uns minutos. Ao chegar à meta e apesar de ser dos poucos atletas restantes em prova, fui recebido com o mesmo carinho dos primeiros. O Carlos Sá veio ter comigo no abastecimento e perguntou-me se tinha valido a pena fazer os 43km. Respondi-lhe de sorriso rasgado na cara suja que fazer trails assim vale toda a pena. E valeu mesmo. Vi nos olhos do Carlos a mesma satisfação que tinha nos meus e senti-me feliz por fazer parte desta família...

 
 
Etapa 1 - Trail noturno - 14km
 
Ao longo da semana fui acompanhando as fotos e os relatos de alguns dos meus heróis dos oito dias e fui contando as horas para poder entrar na mesma festa. Nem as nuvens negras e a chegada pertinente da chuva ao fim do dia poderiam estragar o frenesim no meu estômago...estava quase...
Tal como o resto do pessoal dos quatro dias, ficamos invejosamente a olhar para a cumplicidade dos nossos heróis dos oito dias e lá fomos timidamente lançando também o nosso grito de guerra...Três, dois, um...todos em corrida rápida, como se não houvesse amanhã, rua abaixo...
Embora me tivesse proposto fazer esta primeiro etapa nas calmas, a adrenalina e o entusiasmo do evento, fizeram-me ir na onda e parecia que estava numa prova de estrada. A correria nas ruas acima, o rodopiar do lago e a festa de luz, fizeram-me esquecer que estava a participar num trail...e depois chegou a escadaria...mas que escadaria..! Olhei, olhei e parecia que estava no vídeo sobre o quilómetro mais duro do mundo de Valtellina. Os bombos bem lá no alto, puxavam as pernas escadas acima e estava convencidíssimo que ao alcançar o som dos tambores, estaria no fim das escadas...mas não estava, os malandros...faltava outro lanço de escadas...Mais uma subida em terra depois destes centenas de degraus e finalmente encontrava-me sozinho no meio do monte. Isto de correr com luz na cabeça, é como correr com a cenoura à frente, vamos acelerando o passo, mesmo sabendo que o perigo espreita em cada pedra, raiz ou buraco...Mas é giro, superdivertido. E assim chegamos à vila que nos foi aparecendo como um refugio de luz, bem lá de cima do monte. Tal como os meus amigos, fiquei surpreendidíssimo com a rapidez desta primeira etapa..
 
Etapa 2 - Xertelo - Vila do Gerês - 37km

A chuva não tinha dado tréguas durante toda a noite e a etapa dura que se aproximava, prometia. O entusiasmo da noite anterior tinha-se transformado em alguma apreensão e lá fomos entrando nos autocarros que nos iam levar até Xertelo. O ambiente à bordo era sereno, como se fossemos todos enfrentar a nossa primeira batalha e nem a suposta avaria de caixa do autocarro foi motivo suficiente para lançar gargalhadas. Afinal, estávamos todos tão sequinhos ali dentro...

Chegados à vila, fomos mais uma vez brindados pela simpatia dos aldeões que mesmo com a chuva, não deixaram de nos brindar calorosamente com um concerto. Parecíamos todos umas sardinhas a esconder-nos da chuva. Depois do briefing e a tradução fabulosa do Mauro, ficamos todos a saber o mesmo...era tudo muito dangerous, era preciso ser muito careful e algures devia haver muita levada...mas pela cara dos estrangeiros presentes, ninguém estava preocupado, estava tudo ansioso para arrancar e logo se viria o que o Carlos nos tinha reservado na ementa. E que ementa! Depois do aperitivo de ontem, este prato de entrada (muito bem regado) tinha todos os sabores e mais alguns. As escarpas, terreno técnico e riachos a atravessar era pura aventura. Na travessia do rio Cávado enfurecido, lembrei-me de me armar em esperto e passar ao lado da fila de gente...aqueles calhaus até pareciam jeitosos...só que os últimos estavam muito longe uns dos outros...lá teve que ser...entrei para dentro da água e por muita surpresa minha, para além da fortíssima corrente, nem pé tinha. Se não fosse a mão de anjo do presidente de Cabril, teria seguramente chegado mais cedo lá em baixo...encharcado já estava, mais encharcado fiquei...a partir daí, resolvi nunca mais sair do trilho marcado, porque se o Carlos nos mando por aí, é porque o Carlos sabe...
Queria retribuir a simpatia mostrada pelo presidente de Cabril, mas quem retribuiu, foi o próprio presidente. Na chegada à freguesia, tinha um verdadeiro banquete montado. Foi com muito pena que resolvi na mesma seguir a minha regra de ouro e fiquei-me pelas simples frutinhas e bebidas isotónicas. Ai, se não tivesse que correr mais quarenta quilómetros de trail...
O resto do trail foi só desfrutar por planícies verdejantes, serras de todas as cores, pedregulhos para trepar e finalmente a última descida bem técnica em piloto automático até à vila. Foi bom, muito bom chegar...Se estava preparado para a etapa grande do dia seguinte? Foi como disse ao repórter da prova: "Daqui bocadinho falamos..."

Etapa 3 - etapa rainha - 51km

Na noite anterior fomos brindados com um concerto do Pedro e irmão durante a Pasta Party. É nestes episódios de animação e amizade que um trail assim faz toda a diferença. Para além de nos sentirmos parte de uma família, de estarmos ai todos reunidos para fazer o que mais gostámos, a corrida em si acaba por ser secundária. Os trails de Carlos Sá são sobretudo convívio, o saborear de tudo que este país maravilhoso e a sua gente de melhor têm para oferecer e sair daí com a alma cheia e o corpo rejuvenescido.
No entanto, o ambiente descontraído da noite anterior não conseguiu esconder o aperto na barriga para o que me esperava hoje. Nem consegui tomar o pequeno almoço em condições, o desafio era demasiado grande e pela amostra da entrada de ontem, sabia que o prato principal seria servido bem recheado e mais uma vez bem regado...
Não foi só a hora madrugadora, nem a teimosia da chuva que fez o silêncio antes da partida. Estávamos todos com dúvidas da nossa reação depois dos primeiros 29km, embora ninguém quisesse admitir que os 35km poderiam ser opção.
E lá fomos outra vez...O ritmo e a inclinação inicial prometiam. Não me lembro se foi antes ou depois de alguém ter falado em quilómetro vertical que me deparei com cascata atrás de cascata. Quando pensava que já tinha visto tudo, lá aparecia outra paisagem mais deslumbrante. Sentia-me no paraíso ou como o Gerson disse, sentia-me Deus. Passei por um rebanho de cabras que gentilmente me cedeu passagem. Incrível, até as cabras são simpáticas por estas bandas. Encontrei cavalos selvagens, manadas de vacas, riachos atras de riachos, serras amarelas, roxas, cinzentas, verdes e azuis. Fui-me encontrando sozinho no meio de nada e acompanhado por gente com sorrisos de pura felicidade. Tanto apanhava gente, como eles me apanhavam à mim outra vez. Mas nunca houve espírito de competitividade e ao longo do dia deixei de ser tratado em inglês, já toda a gente sabia que este Belga falava português...Falei com o músico Pedro que tal como eu fazia o percurso à solo e foi muito reconfortante saber que não era o único maluco a gostar do meu próprio ritmo. Pensei que afinal havia mais quem tivesse falta de juízo suficiente para se meter sozinho numa aventura desta envergadura, mas suficiente juízo para o fazer ao seu próprio ritmo.

Ao chegar aos 29km, a famosa divisão das provas, não hesitei um segundo em continuar. Não me lembro bem se aceitei com alívio ou com uma certa frustração o facto de saber que o percurso tinha sido cortado em cerca de uma dezena de quilómetros, mas tinha a certeza que faria o percurso até ao fim e de forma a gozar ao máximo, sem o mínimo de sofrimento. E foi. A última parede feita meio a trepar, meio a deslizar e com a escarpa à vista, foi puro prazer. O rolar por baixo da pedra enorme e entrar na paisagem lisa em contraste com os penhascos acabadinhos de escalar, foi uma bênção para as castigadas pernas. E lá chegamos outra vez ao último abastecimento, sabendo que só nos restava uma derradeira descida e a música aliviante lá no fundo do vale....Foi muito bom chegar com o sol a dar na cara. Agora só faltava uma última etapa para desfrutar em pleno.

Etapa 4 - Vila do Gerês - 17km

A esperança de acabar a prova com sol desvaneceu depois de espreitar pela janela embaciada. Era para acabar como tínhamos começado...com as sapatilhas encharcadíssimas...
Mas parece que ninguém estava preocupado com isto. O nervosismo e o silencio dos dias anteriores tinham-se dissipado e estava toda a gente em plena rua, à chuva, todos mortinhos que fosse dado o grito da partida. Mesmo assim, a calma com que o grupo saiu da vila, monte acima, contrastava com alguma competitividade vivida nos dias anteriores. Agora era só acabar, desfrutar ao máximo, curtir o ambiente, inalar o cheiro do monte e sobretudo chegar inteiro para a festa final. Quem pensava que esta última etapa seria soft, estava enganado, de soft não tinha nada e o Carlos fez-nos acabar tal como tínhamos iniciado, com o sentimento de dever cumprido, o sentimento de que nos tínhamos divertido à brava, mas com a escrita em dia no que diz respeito à dureza dos trilhos. Embora os trilhos estivessem mais parecidos com rios e houvesse alguma ocultação da beleza das paisagens pelo nevoeiro, fiquei com imagens gravadas na retina que nunca mais me vou esquecer. O serpentear da coluna de corredores, a figura típica do trailer entre calhaus enormes e o festival das cores de primavera salpicadas por rochas emergentes, é digna de qualquer óscar de imagem.
À entrada na vila, tal como previsto, cheguei sozinho e fiz a chegada triunfante, tal como tinha sonhado, de bandeira esticada. O meu sorriso tinha tanto de contente como de emocionante. Estes quatro ou cinco dias foram de longe o meu melhor trail de sempre. Melhor do que este só será a repetição que vou fazer para o ano...


Para acabar não podia deixar de agradecer à organização, ao Carlos e à toda a equipa, às gentes da terra, aos acompanhantes, aos bombeiros, aos voluntários, aos meus amigos Nilza e T que vieram comigo e à todos os meus amigos que me apoiaram de longe. É com eventos destes que me apercebo que cada vez gosto mais deste Portugal, desta gente maravilhosa e desta simplicidade tão bem representada na natureza pura e dura do Gerês. Obrigado por tudo e mais alguma coisa!

Obrigado também aos fotógrafos Miro Cerqueira, Matias Novo, Laureano Freixo e Rúben Fueyo, cujas imagens gentilmente roubei para postar aqui.

1 comentário:

  1. Que espectáculo de cronica Verraest !
    Muitos parabens pela tua prova.

    Não tenho jeito nenhum para escrever e descrever o que senti nestes 4 dias., mas muito do que escreveste aqui , revejo-me perfeitamente nas tuas palavras.

    Muitos parabens.
    continuação de boas provas...

    abraço
    Artur

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